Já parou para pensar que uma orientação sexual, ou identidade sexual, é uma nomeação, uma categoria, um grupo, e não uma explicação para comportamentos sexuais? Então, é justamente sobre isso que gostaria de conversar com vocês.
Tudo bem, eu sinto que o tema pode ser polêmico, e por essa razão, quero começar de uma maneira clara e sucinta, para que não haja equívocos posteriores: ao falar que não é uma explicação, não quero nem de longe dizer que não exista ou que não vá entrar como parte de uma análise, contudo, ela em si, por si, não informa muita coisa sobre o episódio sexual.
Ao falarmos de orientação sexual, estamos nos referindo à tendência de um indivíduo na interação afetiva ou sexual com parceiros. Sim, não se espante com a palavra tendência, pois uma grande porcentagem de indivíduos engajam-se ou já se engajaram afetivamente, sexualmente ou através de fantasias com diversos gêneros (Rönspies et al, 2015). Esse dado não é novo, na verdade, estudos produzidos por Kinsey, em 1947, demonstraram que mesmo indivíduos que se identificaram como heterossexuais e homossexuais apresentaram interações sexuais ou afetivas ou fantasiado sobre ter relações com parceiros de um gênero diferente do “condizente” com sua orientação sexual.
A partir de entrevistas realizadas com os participantes de sua pesquisa, Kinsey estruturou uma escala de 0 a 6, em que: 0 – exclusivamente heterossexuais; 1 – heterossexuais com raras relações homossexuais; 2 – heterossexuais com frequentes relações homossexuais; 3 – bissexuais, relações igualmente heterossexuais e homossexuais; 4 – homossexuais com frequentes relações heterossexuais; 5 – homossexuais com raras relações heterossexuais; e 6 – exclusivamente homossexuais.
Há muitas críticas levantadas acerca dessa escala, atualmente, principalmente no que diz respeito ao binarismo das relações, todavia tais dados apontam que: a) apenas alguns indivíduos são exclusivamente heterossexuais ou homossexuais; e b) a sexualidade não é um constructo fechado, impassível de mudança, pois se observa que, em diversas fases da vida, indivíduos podem se engajar em relações com parceiros de gênero diferente do esperado em face de sua orientação autodeclarada, provocando uma mudança nessa classificação.
Um outro exercício rápido que costumo fazer com quem converso é o seguinte: pense em sua orientação sexual, agora me responda: ao escolher um parceiro você está pensando apenas no gênero? Quero dizer, se você é uma mulher heterossexual ou homem homossexual, você se interessa por todos os homens? Se sua resposta for negativa, o que geralmente é, logo observamos uma limitação (e tudo bem se a sua resposta for positiva). Claro, o gênero faz parte, mas existem outras variáveis, outras questões que vão fazer com que escolhamos ou rejeitemos os parceiros com os quais interagimos em nossa vida.
É com essa perspectiva, com este ponto de partida, que gostaria de começar a discorrer sobre os motivos pelos quais a orientação sexual, por si, não é uma explicação de comportamentos sexuais completa, e sim uma descrição, uma nomeação de parte de nossas experiências afetivas e sexuais.
E por que isso é importante? Bem, existem alguns equívocos que tendemos a cair ao olharmos para o comportamento, e buscar um conceito para explicar ele mesmo é redundante e tem pouco valor. Por exemplo, imaginem esta conversa:
— Oi, qual sua orientação sexual?
— Eu sou heterossexual.
— Como você sabe que você é heterossexual?
— Porque eu me atraio por pessoas de um gênero diferente do meu.
— Certo, e por que você se atrai por pessoas de um gênero diferente do seu?
— Ah, porque eu sou heterossexual.
Assim, essas duas pessoas poderiam continuar seguindo a conversa, talvez trocando as palavras para se entender, mas sem chegar nas variáveis importantes, e isso é o que costumamos chamar de circularidade explicativa. Ao olharmos para um comportamento, é necessário que compreendamos muitas questões que vão além de somente o que um indivíduo faz. É preciso analisar a sua história de vida, verificar em qual contexto determinado comportamento está sendo emitido e quais são as mudanças que ele causa no seu ambiente, bem como a influência de suas mudanças causada em si próprio. A cultura vai ter forte impacto nessas questões, principalmente porque é ela que vai nos ensinar, primeiramente, o que seria um comportamento sexual ou o que seria atraente, por exemplo.
Um dado claro disso são certos “estímulos sexuais” que são reforçados nas diferentes culturas: o que é atraente no Brasil (aqui, tende-se a valorizar a bunda), pode não significar nada para a tribo Karen ao norte da Tailândia, em que o estímulo atraente é o ornamento de anéis colocados no pescoço de mulheres, dando-lhes um aspecto alongado como o de girafas. Na China, um pé pequeno, em forma de lótus, era atraente, o que levou várias mulheres a se submeterem a procedimentos que deformavam seus pés de tal maneira que se assemelhassem à flor.
O contexto em que dada ação é realizada se mostra igualmente importante, o que podemos demonstrar desta maneira: é comum observarmos que, em estado de privação, como em casos de encarceramento, há um aumento dos comportamentos sexuais com o mesmo gêneros, já que o ambiente por si não é propício para relações heterossexuais, e outras variáveis podem ser mais importantes para um engajamento afetivo-sexual do que o gênero naquele momento (Menezes, 2005).
Quando nos comportamos, nós tendemos causar uma modificação em nosso ambiente e isso causa uma influência para que nós repitamos ou não determinada coisa. De maneira genérica (e menos técnica) de falar, isso significa que as coisas que acontecem depois de fazermos algo – como nos sentimos, como somos recebidos pelos outros, nossas sensações corporais, nossos valores – acabam fazendo com que nós aprendamos, mesmo que de modo inconsciente, o que fazer, onde fazer e com quem fazer. Exemplo: uma pessoa que utiliza um aplicativo de relacionamento e tem boas experiências provavelmente tornará a utilizá-lo; já uma pessoa que saiu com alguém que apenas nas fotos usadas no app não se parecia com o Mr. Bean (caso hipotético…) e não se divertiu nem um pouco, dificilmente tornará a usá-lo, ou utilize com menor frequência do que o primeiro caso. Guardadas as devidas proporções e complexidades, podemos generalizar para a vida.
Neste momento, eu quero propor mais um tipo de reflexão: pense em suas interações sexuais e afetivas, procure por experiências boas, agradáveis e experiências ruins ou desagradáveis, veja como elas te afetaram. Procure se lembrar de ensinamentos de grupos (como familiares, amigos próximos, colegas de trabalho ou estudo) sobre como fazer determinada coisa, a forma correta; isso influenciou na sua vida, nos caminhos que decidia tomar? E, se sim, como se sentiu depois? Claro que quando estamos falando sobre comportamentos sexuais o fenômeno é muito maior e mais complexo do que respostas emocionais a dado evento.
Ainda há um debate acirrado acerca do inatismo da sexualidade, isto é, se nascemos com determinada orientação sexual, através do material genético ou por exposição hormonal na gestação. Independentemente de uma ou outra raiz, é inegável que muitos de nossos padrões sexuais são aprendidos, desenvolvidos, refinados ao longo de nossa vida, o que quer dizer que, mesmo que nasçamos com determinada orientação sexual, nossas experiências e a forma com qual nós interagimos com o mundo a nossa volta vai nos ensinando os caminhos de exercê-la. Há algumas centenas de anos atrás, uma mulher com o tornozelo ou o pulso à mostra poderia levar homens à loucura. Hoje, eu não costumo ver apenas pulsos expostos em aplicativos de relacionamentos e vocês?
Aproveitando para observarmos outras práticas culturais em épocas diferentes, podemos citar a prática de pederastia na Grécia. Não só era comum, como também fazia parte do mecanismo de ascensão social na elite grega, que pupilos e filósofos se relacionassem sexualmente, mesmo que no futuro isso não significasse um padrão homoafetivo em suas relações (Menezes, 2005). Em Tebas, o exército conhecido como o “Batalhão Sagrado de Tebas” era constituído por cento e cinquenta casais de soldados, com o objetivo de melhorar seu desempenho na guerra, que levou a hegemonia de Tebas na Grécia no século IV A.C. Um fato curioso é que este foi o único exército que conseguiu vencer os famosos espartanos mesmo estando em menor número. Duas vezes (Pastore, 2011). Os comportamentos sexuais e afetivos nestes exemplos não estavam associados somente ao gênero, mas a variáveis ligadas à profissão e posição social.
Com as produções da Relational Frame Theory (RFT) dentro do campo da sexualidade humana, podemos compreender como estímulos sexuais se relacionam simbolicamente com estímulos antes não treinados, eliciando respostas de excitação sexual (Barnes e Roche,1997). Esse dado demonstra que as aprendizagens sexuais sofrem influência cultural, mesmo que discreta ou indiretamente, embora ainda sejam necessárias mais pesquisas para atestar com exatidão este efeito.
Tomando essa perspectiva, quer dizer que indivíduos não se relacionam com A ou B porque são de orientação sexual A ou B. Eles se comportam, interagem romântica ou afetivamente e, assim, vão se entendendo ou se classificando com dada orientação sexual fornecida por uma cultura. Isso permite uma postura mais aberta, pois não se parte de uma experiência já com um apriori, ou um caminho certo à frente, uma vez que começamos a reparar que podem existir outras coisas mais significativas em relações afetivo-sexuais do que somente o gênero e que mesmo as classificações são flexíveis.
A RFT também pode fornecer subsídios teóricos e experimentais para nos ajudar a compreender como essas construções e nomenclaturas vão sendo desenvolvidas. Quais elementos fazem parte do campo da heterossexualidade? O que seria mais hétero ou menos hétero? Hétero e gay são difentes. Quais elementos fazem parte do campo da homossexualidade? E assim sucessivamente. Todos esses estímulos podem estar em molduras relacionais de igualdade, comparação, oposição, e consequentemente, poderão ou não eliciar respondentes sexuais. De Rose (2016), aliás, dedica-se a mostrar como condicionamento respondente se relaciona com comportamento simbólico e sua importância para a manutenção de certas práticas culturais.
Na clínica, um cliente que poderia encontrar-se nessa situação, em que seus desejos ou mesmo seus engajamentos afetivo-sexuais não se encaixam com o senso-comum sobre sua orientação sexual e isso pode levar ao sofrimento. A sensibilidade às variáveis que compõem os padrões sexuais tanto poderia levar a uma melhor compreensão do que está acontecendo, como também a um acolhimento mais aberto e presente, afastado de regras ou normas.
Claro que a intenção deste artigo nunca foi a de esgotar todas as questões referentes à sexualidade, há muito o que se discutir e precisamos ter cuidado, sensibilidade e atenção aos direitos básicos de cada pessoa, já que nossos antecessores utilizaram erroneamente nosso conhecimento para produzir barbaridades na busca de patologizar e “curar” diversos padrões sexuais e de gênero, como aconteceu com a homossexualidade e a transgeneridade.
Este é apenas um dos primeiros passos. E como diria um ditado zen: não se atravessa uma montanha com dois passos.
Referências:
Barnes, D., & Roche, B. (1997). Relational frame theory and the experimental analysis of human sexuality. Applied and Preventive Psychology, 6(3), 117-135.
de Rose, J. C. (2016). A Importância dos Respondentes e das Relações Simbólicas para uma Análise Comportamental da Cultura1. Acta Comportamentalia: Revista Latina de Análisis de Comportamiento, 24(2), 201-220.
Menezes, A. B. D. C. (2005). Análise da investigação dos determinantes do comportamento homossexual humano. Dissertação de Mestrado.
Pastore, F. (2011). O Batalhão Sagrado de Tebas: militarismo e homoafetividade na Grécia Antiga. Revista Trilhas da História, 1(1), 39-51.
Rönspies, J., Schmidt, A. F., Melnikova, A., Krumova, R., Zolfagari, A., & Banse, R. (2015). Indirect measurement of sexual orientation: Comparison of the implicit relational assessment procedure, viewing time, and choice reaction time tasks. Archives of Sexual Behavior, 44(5), 1483-1492.